Tornar-se mulher é um processo, já dizia Simone de Beauvoir. Na sua famosa frase “Não se nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa considera que “ser mulher” é uma socialização. Uma performance ensinada através de símbolos e da reprodução de determinados comportamentos.
Quando decide-se que um bebê se tornará uma mulher, passam a fazer parte de sua vida não apenas os vestidos, os lacinhos e a cor rosa. Mas, também, a performance da delicadeza, da fragilidade e da obediência.
Passa a fazer parte, principalmente o heterocentramento: ou seja, começamos a ensinar a essa criança que ela deve colocar as necessidades dos outros antes das próprias.
Está achando um pouco exagerado? Pois então vamos pensar um pouco mais!
A maternidade faz parte da vida de uma mulher muito antes de ela se tornar, de fato, uma mulher. Desde nossos primeiros anos de vida, nos rodeiam de “brinquedos de menina”. São bonecas, mamadeiras, panelinhas. Objetos e atividades que servem como modelos para o que nos espera na vida adulta: cuidar do outro.
Mas e se nos recusarmos?
Em Clock (2023), Ella é uma “mulher bem-sucedida”. Alcançou tudo aquilo que uma mulher deveria almejar: tem uma carreira de sucesso como decoradora, um bom casamento e uma casa grande e bonita. Mas, ao contrário das outras mulheres ao seu redor, Ella se recusa a “dar o próximo passo”. Ela não quer ter filhos.
Mais do que não querer, ela não sente a mínima vontade.
Além da pressão das amigas “mães de comercial de margarina”, que consideram a maternidade a maior realização para uma mulher (mas, na prática, mal olham por suas crianças, como destaca a cena da árvore), Ella ainda precisa lidar com o peso da herança geracional.
Como filha única de uma família judia, sua renúncia à maternidade significa, aos olhos de seu pai, o fim de uma linhagem e o desrespeito a sua matriarca, uma mulher que sobreviveu a campos de concentração e à migração para os Estados Unidos.
Afinal, se Ella não tiver filhos, quem vai herdar o relógio velho da família?
Para acrescentar ainda mais fardos, a personagem precisa lidar com o sentimento de ingratidão diante das melhores amigas, um casal de mulheres sáficas que “nunca poderão ter um filho com quem mais amam”. Oportunidade que Ella tem, já que é uma mulher cis e hétero, mas desperdiça.
Some-se a isso um marido banana que não diz não, mas também não diz sim. Sabe da escolha da esposa, mas não a apoia diretamente. Apenas “espera o tempo dela”. Mas e se esse tempo estiver passando e a escolha não estiver nem perto de mudar?
Com quase 40 anos, Ella se vê entre a falta de desejo pela maternidade, a pressão externa e o tal do relógio biológico (que dá título ao filme). Ela passa a se questionar se há algo de errado consigo por não sonhar com a maternidade.
(Quem nunca, não é mesmo?)
Surge então a oportunidade de ser cobaia em um estudo promissor: uma experiência que promete “corrigir” a sua falta de desejo pela maternidade. Uma experiência que promete tornar Ella uma “mulher normal”, que anseia desesperadamente por um bebê e que só se tornará completa se tiver um nos braços.
Sim, é um filme de terror.
A ideia de que “ser mulher é ser mãe” é antiga, mas não deixa de ser questionada
No Brasil, 37% das mulheres não desejam a maternidade, segundo um estudo realizado pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). E elas têm muitos motivos: o alto custo de vida; maior envolvimento com a carreira do que mulheres de gerações anteriores; falta de rede de apoio; dupla ou até tripla jornada ao conciliar trabalho, serviço doméstico e maternidade; e até mesmo a preocupação com o futuro, diante das mudanças climáticas.
E há aquelas que simplesmente não querem. E tá tudo bem.
Ou será que não?
Afinal, ter filhos é uma escolha política.
A maternidade como conhecemos não é algo natural, mas uma construção social, histórica e política. Dizer que maternar é algo natural é, na verdade, uma forma de controlar corpos que nasceram com a capacidade de gestar.
Por isso, a maternidade nos é vendida como uma forma de validação social.
(Que atire a primeira pedra a mulher que já foi levada a se sentir inferior por decidir não ter filhos).
Diante de uma sociedade onde quem ocupa os espaços de poder são, majoritariamente, os homens, às mulheres é oferecida uma ilusão de que a maternidade as coloca em um patamar especial.
Ao maternar, elas são “as guardiãs da nação”.
Mas se somos tão especiais assim, devemos esperar suporte da sociedade para poder maternar de forma saudável, não é mesmo? Errado. Ainda enfrentamos violência obstétrica, falta de uma licença paternidade justa, falta de creche e ficamos um passo para trás na carreira, já que a competição desenfreada dentro do mercado de trabalho não pode ficar esperando enquanto você está sendo mãe.
Muito antes disso, mulheres marginalizadas mal têm acesso à educação preventiva e controle de natalidade, para que possam iniciar um planejamento familiar com conforto e segurança para si e para seus filhos.
Mas e aquelas que escolhem enfrentar os estereótipos de gênero?
Mulheres que seguem firmes na sua escolha de não serem mães têm o desafio de lidar com a culpa e a responsabilização. Por sermos treinadas desde criança para o cuidado com o outro, quando há a renúncia a um filho, para onde se direciona esse cuidado?
Normalmente para um homem.
Dificilmente para outras mulheres.
Quase nunca para nós mesmas.
A culpa por renegar a maternidade pode também levar a uma sobrecarga com outras tarefas dentro de casa ou no trabalho. Enquanto isso, homens que decidem abrir mão da paternidade e investir na carreira, por exemplo, são celebrados. Mulheres que fazem o mesmo são acusadas de serem egoístas.
Essas nunca serão mulheres de verdade.

Em O Conto da Aia (1985), Margaret Atwood descreve uma sociedade distópica, onde os Estados Unidos, após um golpe de estado, se transforma em um regime teocrático chamado Gilead. Nessa “nova” sociedade, onde a religião é absoluta, as mulheres são divididas de acordo com o seu valor, que está diretamente ligado ao seu poder aquisitivo, a sua capacidade de gestar e a sua obediência ao regime religioso e violento.
As Esposas dos Comandantes, apesar de serem inférteis, ocupam o topo da pirâmide. Elas não podem ter um filho por meios naturais, mas é a elas, que possuem dinheiro e status, que cabe exercer a maternidade.
Há ainda as Marthas, mulheres inférteis e pobres que fazem todo o trabalho doméstico na casa dos Comandantes. E as Econoesposas, casadas com soldados e homens que não pertencem à elite.
Por fim, há as Aias, mulheres escravizadas por sua capacidade de gestar em um país onde a infertilidade se tornou majoritária entre as mulheres. As Aias podem gestar, mas não podem maternar. Elas são entregues aos Comandantes, como objetos. São fecundadas por estes, com o apoio das Esposas (que podem até não gostar da situação, mas não ousam enfrentar o sistema que as beneficia). E quando o bebê nasce, é tirado da Aia e entregue para a Esposa, tornando-se filho desta.
Querendo ou não, Margaret Atwood criou uma alegoria para a sociedade atual. Onde a capacidade de gestar escraviza simbolicamente aquelas que o podem, mas maternar de forma saudável só é destinado àquelas que ocupam o topo da pirâmide.
Para todas as outras, as pobres, as racializadas, as imigrantes e as trans, a maternidade deve ser negada ou desassistida, pois não serve para o sistema.
Ser mãe, no mundo atual, é um ato de coragem. Mas não o ser também é. Porque ser mulher é um processo atravessado pela dor em um mundo que não nos é amigável.
Dizer “eu não quero ter filhos” é um ato político. É romper com os dispositivos de gênero, com um sistema cruel e com o heterocentramento.
“É afirmar o direito de existir para si, e não apenas para os outros”.